Liszt Vieira e Marijane Lisboa (*)
Na campanha eleitoral, a candidata Dilma transformou adversários em inimigos a serem abatidos. Devorou o inimigo, absorvendo seus defeitos e qualidades e adotando seu programa econômico, numa antropofagia política como há muito não se via. Se a antropofagia cultural criou algo novo, a política apenas reproduz o velho.
Além de pedir ao Bradesco para indicar o Ministro da Fazenda, a presidenta foi mais longe: convidou para Ministra da Agricultura uma liderança ruralista que se notabilizou pela rejeição da reforma agrária, apoio ao desmatamento e violação dos direitos indígenas. Para o Ministério das Cidades, sai o PP e entra o PSD do Kassab, numa troca de seis por meia dúzia. E para a Ciência e Tecnologia, um inimigo da ciência. Patrus Ananias e Juca Ferreira são honrosas exceções à mediocridade dominante.
O capital necessita expandir suas fronteiras e abocanhar as áreas protegidas que estão fora do mercado, como unidades de conservação e terras indígenas. Há centenas de projetos de lei no Congresso reduzindo essas áreas que seriam “desafetadas”. Um novo Código de Mineração, que permitirá, ou melhor, imporá a mineração em terras indígenas, já está prestes a ser votado no Congresso.
Tudo ocorre sob o olhar complacente do PT que se tornou cúmplice da política neo-extrativista que fortalece a reprimarização da economia baseada na exportação de produtos primários sem agregar valor (soja, carne, madeira, minérios).
Assim como o PSDB, o governo do PT acredita que a solução para o país é o crescimento econômico predatório dos recursos naturais, sem privilegiar qualidade de vida. E se houver índios, meio-ambiente ou Ministério Público atrapalhando, passa por cima. Com 39 ministros – a grande maioria medíocre – o primeiro governo Dilma foi, em todas as áreas, muito pior que seu antecessor. Desorganizou as contas públicas, estancou o crescimento, estabilizou a desigualdade que parou de cair, aumentou o desmatamento da Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica, que haviam caído, e desapareceu do cenário internacional.
Priorizou grandes hidroelétricas na Amazônia sem consulta às populações indígenas e tradicionais afetadas, fez corpo mole no combate ao desmatamento para não contrariar pecuaristas, madeireiros e mineradores responsáveis pelo desmatamento que voltou a crescer, deu incentivos à indústria automobilística em desconsideração ao grave problema das mudanças climáticas. E nenhum incentivo foi concedido a projetos de sustentabilidade.
Houve avanços, especialmente nos programas sociais que aumentaram a renda nos estratos mais pobres, assim como ocorreu nas camadas mais ricas. Mas o baixíssimo crescimento econômico e pressão inflacionária ameaçam a oferta de emprego e o poder aquisitivo do salário. Daí a presidente reeleita haver assumido a proposta, antes demonizada, do “inimigo” devorado: aumentou os impostos e a taxa de juros, cortou gastos públicos e benefícios sociais, e ignorou a proposta de taxar as grandes fortunas.
A corrupção na Petrobras explica porque a usina Abreu e Lima passou de 2,5 a 20 bilhões de dólares e a refinaria Pasadena custou em torno de 1,5 bilhão, quando um ano antes custava 42,5 milhões. E a presidenta Dilma aprovou essa transação sem se preocupar com o contrato, confiando apenas num parecer “técnico” de duas páginas.
Por ocasião da entrega do Relatório da Comissão da Verdade, a Presidenta mencionou misteriosos pactos políticos entre os ditadores de plantão e uma oposição desconhecida para impedir a punição dos agentes de Estado responsáveis pelas torturas e assassinatos de presos políticos. Lembremos que a ONU e a OEA são taxativas sobre a impropriedade de auto-anistias para crimes contra a humanidade cometidos durante a Ditadura.
Mas tudo isso foi esquecido durante o momento mágico da campanha eleitoral, quando se desenterraram antigas teses ideológicas da esquerda contra a direita. Pura música para ouvidos militantes e ameaças para as camadas de baixa renda que perderiam benefícios sociais em caso de derrota do PT.
Uma visão romântica que desmoronou após a eleição. A realidade é mais complexa. O Bradesco nomeou o Ministro da Fazenda, um neoliberal ortodoxo, e a presidenta Dilma, em escolha pessoal, nomeou um símbolo da direita para Ministra da Agricultura.
O canibalismo político atual retoma antiga fórmula lulista: um programa econômico neoliberal, mercadocêntrico, e um programa social estadocêntrico. Um híbrido de neoliberalismo e desenvolvimentismo. Mas a conjuntura internacional agora é de crise econômica. Nesse contexto, política de austeridade provoca recessão. O risco de fracasso é grande, o que ameaçará a permanência do PT no poder, por maiores que sejam as piruetas ideológicas dos marqueteiros oficiais.
Fonte: www.cartamaior.com.br
(*) Liszt Vieira é professor da PUC-Rio e ex-deputado pelo PT/RJ. Marijane Lisboa é Professora da PUC-SP