Jornalismo golpista
A participação entusiasmada dos donos de mídia,
articulistas, editorialistas e chefes de redação na conspiração contra o
presidente João Goulart
por Juremir Machado da Silva
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publicado
03/04/2014 05:37
Reprodução e Folha Press
No Brasil, 1964 pode ser descrito
como o ano da imprensa colaboracionista. Os intelectuais jornalistas
traíram o compromisso com a verdade e com a independência por
desinformação, conservadorismo e ideologia. Alberto Dines, Antonio
Callado e Carlos Heitor Cony ajudaram a derrubar Jango. O poeta Carlos
Drummond de Andrade sujou as mãos com algumas mal traçadas crônicas
destinadas, pós-golpe, a chutar cachorro morto. Em 1954, a mesma
imprensa havia empurrado Getúlio Vargas ao suicídio. Nas únicas três
vezes em que o Brasil teve governos do centro para a esquerda –
1951-1954, 1961-1964 e 2003 até hoje –, a mídia aliou-se aos mais
conservadores ao agitar os mesmos espantalhos: corrupção, anarquia,
desgoverno, aparelhamento do Estado, tentações comunistas e outras
ficções mais ou menos inverossímeis.
Em 1964, João Goulart, fervido no caldo borbulhante da Guerra Fria, enfrentou a ira moralista de veículos como o Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, Tribuna da Imprensa, O Dia
e dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. A queda de Jango
começou a se definir em 13 de março, uma sexta-feira. O presidente
cometeu o pecado de abraçar a reforma agrária e de encampar as
refinarias de petróleo. A reação conservadora pôs nas ruas as Marchas da
Família com Deus pela Liberdade. Consumado o golpe, o diretor de O Estado de S. Paulo,
Julio de Mesquita, não se constrangeu em publicar, em 12 de abril de
1964, o “roteiro da revolução”, que ajudara a preparar com auxílio do
professor Vicente Rao, em 1962.
O patriarca da imprensa golpista clamava
pelo fechamento do Congresso Nacional e das assembleias legislativas.
“Há mais ou menos dois anos, o Dr. Júlio de Mesquita Filho, instado por
altas patentes das Forças Armadas a dar a sua opinião sobre o que se
deveria fazer caso fosse vitoriosa a conspiração que então já se
iniciara contra o regime do Sr. João Goulart, enviou-lhes em resposta a
seguinte carta...” Sugeria a suspensão do habeas corpus, um expurgo no
Judiciário e a extinção dos mandatos dos prefeitos e governadores. A
solução “democrática” contra o governo de Jango seria uma junta militar
instalada no poder por, no mínimo, cinco anos.
A “Mensagem ao Congresso”,
enviada por Jango em 15 de março, detonou o horror na imprensa golpista.
O confronto com os marinheiros reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos,
no Rio de Janeiro, em 25 de março, deu nova e poderosa munição para o
golpismo midiático: as Forças Armadas estariam minadas pela
indisciplina. Os marinheiros da base da hierarquia tinham reivindicações
subversivas, entre elas... o direito ao casamento. A mídia considerava
tudo isso muito radical. Em 30 de março, Jango compareceu ao encontro
dos sargentos no Automóvel Clube do Rio. Foi a senha para o
autodenominado “vaca fardada”, o general Olympio Mourão Filho, dar o seu
coice mortal, marchando com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio. A
mídia exultou.
O golpe partiu de Minas sob a liderança
civil do governador Magalhães Pinto. Alberto Dines, hoje decano dos
críticos de mídia e pregador de moral e cívica no seu Observatório da
Imprensa, brindou o governador, no livro que organizou e publicou ainda
em 1964 para tecer loas ao golpismo – Os Idos de Março e a Queda em Abril
–, com o mais alto elogio disponível na época, um cumprimento aos
colhões do pacato golpista: “Enfim, apareceu um homem para dar o
primeiro passo. Este homem é o mais tranquilo, o mais sereno de todos os
que estão na cena política. Magalhães Pinto, sem muitos arroubos,
redimiu os brasileiros da pecha de impotentes”.
O Correio da Manhã deveria constar
no livro dos recordes como o mais rápido caso de arrependimento da
história do jornalismo. Em 31 de março e 1º de abril de 1964, golpeava
furiosamente. No editorial “Basta!”, decretava: “O Brasil já sofreu
demasiado com o governo atual. Agora, basta”. De quê? “Basta de farsa.
Basta da guerra psicológica que o próprio governo desencadeou com o
objetivo de convulsionar o país e levar avante a sua política
continuísta. Basta de demagogia para que, realmente, se possam fazer as
reformas de base”.
O jornal iludia-se como uma senhora de classe média
desinformada: “Queremos as reformas de base votadas pelo Congresso.
Queremos a intocabilidade das liberdades democráticas. Queremos a
realização das eleições em 1965. A nação não admite nem golpe nem
contragolpe”. No editorial “Fora!”, saiu do armário: “Só há uma coisa a
dizer ao Sr. João Goulart: 'Saia!”' Veredicto: “João Goulart iniciou a
sedição no país”. E mais: “A nação não mais suporta a permanência do Sr.
João Goulart à frente do Governo. Chegou ao limite final a capacidade
de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao
Sr. João Goulart senão a de entregar o Governo ao seu legítimo
sucessor”. Como poderia de um golpe vir um “legítimo sucessor”?
Mistérios do jornalismo: “Hoje, como ontem, queremos preservar a
Constituição. O Sr. João Goulart deve entregar o Governo ao seu sucessor
porque não pode mais governar o País”.
Os grandes jornais paulistas e cariocas atolaram-se com o mesmo entusiasmo. Apoiaram o golpe e a ditadura. A Folha de S.Paulo
ficou famosa por emprestar suas caminhonetes para a Operação
Bandeirantes transportar “subversivos” para o tronco. Em 22 de setembro
de 1971, o jornal de Octavio Frias tecia em editorial o seu mais
ditirâmbico elogio ao pior momento da ditadura: "Os ataques do
terrorismo não alterarão a nossa linha de conduta. Como o pior cego é o
que não quer ver, o pior do terrorismo é não compreender que no Brasil
não há lugar para ele. Nunca houve. E de maneira
especial não há hoje, quando um governo sério, responsável, respeitável
e com indiscutível apoio popular está levando o Brasil pelos seguros
caminhos do desenvolvimento com justiça social, realidade que nenhum
brasileiro lúcido pode negar, e que o mundo todo reconhece e proclama".
Esse apoio explícito da Folha de S.Paulo
ao governo de Emílio Garrastazu Médici ganha nesse editorial um tom de
confissão apaixonada: “Um país, enfim, de onde a subversão – que se
alimenta do ódio e cultiva a violência – está sendo definitivamente
erradicada, com o decidido apoio do povo e da imprensa, que reflete os
sentimentos deste. Essa mesma imprensa que os remanescentes do terror
querem golpear”. Em 2009, a Folha de S.Paulo chamou a ditadura de “ditabranda”. O arrependimento nunca chegou.
O Globo, em editorial de 2 de abril de 1964,
notabilizou-se pela bajulação surrealista: “Vive a Nação dias gloriosos.
Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de
vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados,
para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem”. Em 7 de
outubro de 1984, nos 20 anos do regime, Roberto Marinho reincidiu:
“Participamos da Revolução de 1964 identificados com os anseios
nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela
radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção
generalizada”. Só 49 anos depois do golpe, O Globo publicaria uma
retratação contraditória e pouco convincente. Assim foi com outro
representante do jornalismo carioca. Em 31 de março de 1973, o Jornal do Brasil
comemorava: “Vive o País, há nove anos, um desses períodos férteis em
programas e inspirações, graças à transposição do desejo para a vontade
de crescer”.
Em 2 de abril de 1964, a Tribuna da Imprensa deu em manchete uma lição do mau jornalismo que sempre a distinguiu: “Escorraçado, amordaçado e
acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o
Sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos
comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas”.
Se os jornais apoiaram o golpe e a ditadura, muitos
intelectuais jornalistas marcharam na linha de frente do golpismo. Cony,
que logo percebeu o tamanho da encrenca e passou a criticar o novo
regime, admitiu ter participado da confecção dos editoriais “Basta” e
“Fora” do Correio da Manhã: “Minha participação
limitou-se a cortar um parágrafo e acrescentar uma pequena frase”.
Quanta modéstia retrospectiva! Para Cony, João Goulart era um “homem
completamente despreparado para qualquer cargo público, fraco,
pusilânime e, sobretudo, raiando os extensos limites do analfabetismo”.
Dines vomitaria uma das maiores asneiras da época: “É
preciso muita convicção para não se enredar pelo glamour de uma façanha
esquerdista. Quem tem coragem para dizer que aqueles marinheiros, que
arriscaram a vida com aquele motim por uma causa tão distante e
abstrata, como reformas de base, eram oportunistas e agitadores”. Entre
as causas distantes e abstratas defendidas naqueles tempos estavam o
direito ao casamento e ao voto para os analfabetos. Em 1968, depois do
AI-5, em discurso numa formatura, Dines criticou a censura. Enrolou-se
com os velhos amigos. O Serviço Nacional de Informações forneceu-lhe um
atestado de bons antecedentes descoberto pelo pesquisador Álvaro
Larangeira: “Sempre se manifestou contrário ao regime comunista.
Colaborou com o governo revolucionário, escrevendo livro sobre a
revolução e orientou feitura de cadernos para difundir objetivos da
revolução”. Não foi denunciado. Perdoou-se o deslize.
Callado faz de Jango um bêbado,
incompetente e inculto, casado com uma mulher fútil, e com um vício
terrível, “o de aumentar o salário mínimo”. O futuro escritor
atrapalhava-se com as palavras: “A Presidência da República foi
transformada numa espécie de grande Ministério do Trabalho, com a
preocupação constante do salário mínimo”. Chafurdava na maledicência:
“Ao que se sabe, muitos cirurgiões lhe garantiram, através dos anos, que
poderia corrigir o defeito que tem na perna esquerda. Mas o horror à
ideia de dor física fez com que Jango jamais considerasse a sério o
conselho. Talvez por isso tenha cometido o seu suicídio indolor na
Páscoa”. Raízes de certo jornalismo de nossos dias.
Juremir Machado da Silva é jornalista e autor de 1964, Golpe Midiático-Civil-Militar.
Fonte: www.cartacapital.com.br