“Eu também tenho ressalvas à expressão “capitalismo  avançado”. Os países capitalistas avançados são os mais destrutivos.  Você chamaria isso de avançado? Não é avançado e em muitos aspectos nos  traz de volta à condição da barbárie”
Entrevista concedida a Matheus Pichonelli e Ricardo Carvalho
Quando você pensa na totalidade da América Latina, é impossível negar  que houve tremendos avanços políticos. Houve mudanças significativas  também em outros aspectos. A primeira vez que eu vim ao Brasil foi em  1983. Após uma conferência em João Pessoa, eu dava uma entrevista numa  rádio local quando vi pela janela uma grande aglomeração de pessoas.  Durante a pausa para os comerciais, fiquei sabendo que a razão daquela  movimentação toda era que em algum lugar perto de João Pessoa havia  protestos de pessoas famintas, que não tinham o que comer.

Lula deixa Brasília, em seu último dia como presidente, com mais de 80% de aprovação. Foto: Renato Araujo/Agência Brasil
Agora, eu não afirmo com isso que a América Latina, assim como o  restante do mundo, poderá se isentar de enfrentar esses problemas  estruturais que eu já mencionei. E esse é o grande desafio para o  futuro. A dimensão muito positiva é que na América Latina existem  movimentos extremamente importantes como o campesinos e o  Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). São movimentos sociais que  não tem a perspectiva de implorar por favores políticos, mas que tomam a  iniciativa e tentam controlar as coisas por si mesmo. Uma das  características mais importantes desses movimentos é que eles tentem  controlar a situação.
Na América Latina, as soluções também precisam levar em conta um  esforço para remediar nossa relação com a natureza. Em um futuro  próximo, por exemplo, nós teremos de considerar como colocar energia nos  nossos carros. Se você produz carros, eles precisam de energia de  alguma maneira. Ao mesmo tempo, nós multiplicamos cada vez mais o número  de carros porque a produção não pode parar. Mas, o que precisamos fazer  é perceber que a real necessidade das pessoas é o transporte, não os  carros. Nós precisamos pensar em meios de transportes adequados, não  carros individuais que agridem a natureza.
Eu a considero a América Latina, de longe, o continente mais  esperançoso do mundo. Aqui, coisas interessantes vêm acontecendo desde  os anos 70. A primeira reação aos movimentos que eclodiam, naquela  época, foram as ditaduras. Ao menor sinal de problema, os  norte-americanos encontravam um ditador. Eles enviavam os fuzileiros ou  achavam algum general que pudesse fazer o trabalho por eles. Hoje os  Estados Unidos não podem mais fazer isso, essa fase histórica passou,  mas ainda carrega consequencias e repercussões.
Eu acredito que as reais transformações estruturais, que levaram  séculos para acontecer do feudalismo para o capitalismo, não demorarão  tanto para ocorrer. Por quê? Porque nós não temos séculos. Nosso tempo  está se esgotando. E essas mudanças não podem ser pensadas como algo  isolado ao “mundo subdesenvolvido”. Nós vivemos em um único mundo.  Existem alguns conceitos mistificadores como “terceiro mundo”. Eu sempre  rejeitei essa expressão. O que é o terceiro mundo? Eu apenas conheço  um. Não é o “terceiro mundo”, mas uma parte integrada do mundo na qual  os países são explorados. E a América Latina é o continente mais  esperançoso onde as mudanças serão iniciadas, mas não poderão ser  concluídas.
Globalização é um conceito utilizado apologeticamente. A realidade da  globalização é que existe, na verdade, uma tendência para a integração  econômica. Mas, politicamente, nada é resolvido. E hoje ainda prevalece a  lógica de confrontar problemas políticos por meio da guerra, violência e  destruição. É o que fazem os Estados Unidos. Isso é um grande absurdo  porque nada na história da humanidade foi resolvido pela guerra.
Eu também tenho ressalvas à expressão “capitalismo avançado”. Os  países capitalistas avançados são os mais destrutivos. Você chamaria  isso de avançado? Não é avançado e em muitos aspectos nos traz de volta à  condição da barbárie. Rosa Luxemburgo uma vez disse “socialismo ou  barbárie”. Eu acrescentaria algo à frase de Rosa Luxemburgo: “barbárie,  se tivermos sorte”. Porque a destruição total da humanidade é o que está  em nosso horizonte. A tendência é sempre resolver os problemas com  guerras e destruições. Na Primeira Guerra, os aliados saíram vitoriosos.  Mas o que eles resolveram? Eles criaram Hitler. Por isso eu digo que as  decisões estão sendo tomadas às costas das pessoas. Elas nunca  antecipam as coisas. Elas nunca imaginam que depois da vitória vem a  destruição.
Em 1871, na Comuna de Paris, o que aconteceu foi uma brutal  destruição. Bismark, o chanceler alemão, que venceu as tropas francesas  anos antes, quando viu as comunas tomando o poder em Paris, ordenou a  libertação dos prisioneiros de guerra franceses para destruir a  organização. O que aconteceu depois? Três impérios fizeram um pacto para  lutar juntos contra esses tipos de distúrbios feitos pela população,  caso acontecesse de novo. Isso não é mais possível. Um dos maiores  estrategistas de guerra de todos os tempos, general Klausevits, disse  uma vez: “a guerra é a continuação da política, só que por outros  meios”. Hoje isso é inconcebível. Uma nova guerra mundial acabaria com a  humanidade. Essa é a diferença histórica fundamental.
A América Latina é hoje uma das regiões onde se tem mais esperanças,  porque as pessoas estão tomando o controle das decisões, assumindo  responsabilidades, depois de terem eliminado ditadores.
E como vamos fazer essa transformação? Transformando as pessoas. A  exploração da esmagadora maioria das pessoas por poucos não é mais  aceito como era antes. No socialismo você não pode fazer isso. Você não  aceita uma minoria que controla a política e a economia tomando todas as  decisões. Seria um absurdo. Por isso temos que criar uma sociedade da  igualdade substancial. A produção de mercadorias e o mercado devem ser  as bases dessa equalização. Precisamos ir em direção a um sistema de  igualdade substancial, com reorientação, com participação nos processos  de decisão, com nossas decisões sobre o que queremos fazer para tornar  nossas realizações mais justas, mais igualitárias. Ninguém precisa  decidir isso por você.
Em “The Critique of The Gotha Program”, Marx fez a definição do que  seriam os estágios inicial e final do socialismo. No primeiro, a  distribuição seria feita a cada um de acordo com a sua contribuição para  o total do produto social. Na fase avançada, seria de acordo com a sua  capacidade ou necessidade. Agora, quem determina o que a gente precisa?  Apenas uma pessoa, você mesmo. Hoje, 1% ou 2% da população controla de  40% a 60% dos recursos e riquezas da sociedade. Para mudar isso, será  preciso uma cooperação das pessoas pelo mundo. Para produzir e  distribuir conforme as necessidades, será preciso criar empresas  cooperativas. Isso vai ser a base da sociedade do futuro. E não podemos  ter certeza de que essas transformações vão ser feitas apenas dentro da  lei. Não estamos enfrentando apenas leis humanas, mas as leis da  natureza. A natureza está nos impondo seus limites. Por isso precisamos  nos adaptar ao melhor uso dos recursos. Isso vai acontecer em pouco  tempo – mas não no meu tempo, infelizmente. As pessoas estão começando a  confrontar essa realidade, sobretudo na América Latina.
FONTE: http://www.cartacapital.com.br/politica/america-latina-terra-de-esperanca <acessado em 27.06.2011>.
 

 
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