"As grandes empresas de mídia brasileiras não querem que o seu formidável
poder de indução seja sequer argüido. As grandes empresas de mídia
brasileiras estão na contramão do processo democrático baseado na
equação poder-e-contrapoder"
Alberto Dines (20/9/2000)
Ultimamente, um acontecimento social levou muita polêmica para o rádio Jacobinense e para a imprensa local de forma geral. O fato é que durante uma transmissão por meio de rede social, o prefeito de Jacobina utilizou o termo "Bicão" para se referir aos âncoras das emissoras de rádio local.
Deste modo, iremos tomar este termo para realizarmos uma breve análise dos sentidos mobilizados pelos dizeres do então prefeito à luz da teoria do discurso de linha francesa. Nesta corrente teórica as palavras, expressões e proposições recebem seus sentidos a partir de formações ideológicas.
Primeiramente, devemos salientar que o termo "Bicão" não possui o mesmo sentido para quem profere nem para quem escuta. Haja vista que os enunciadores de tais termos se encontram em formações sociais diferentes e, assim, os efeitos destas palavras mobilizam sentidos distintos tanto para os ouvintes/leitores quanto para os autores, ou seja, as repercussões que ocorreram se deram exatamente por conta dos sujeitos falantes estarem em posicionamentos ideológicos diferentes.
Para esclarecer melhor, vamos usar um exemplo clássico: Quando o patrão diz/escuta a palavra "salário" ela carrega sentidos totalmente distintos da expressão "salário" para o empregado, enquanto o patrão enxerga uma carga onerosa, o trabalhador vê como algo que precisa ser valorizado e garantido para a sua sobrevivência. Deste modo, o termo "Bicão" quando utilizado por um sujeito ocupante do mais alto cargo do Poder Executivo municipal, deriva sentidos que se referem ao conchavos realizados historicamente entre os prepostos da mídia radiofônica e os "donos" da chave dos cofres públicos. Portanto, a expressão "Bicão" constituiu sentidos que foram interpretados pelos "Bicões" locais como algo não diplomático, já que antes da atual gestão, os acordos entre poder e mídia radiofônica eram realizados de forma privada (por meio de contratos) e raramente o ouvinte percebia porque diante de tantas demandas públicas na zona urbana e rural, os "microfones" conseguiam filtrar as pautas polêmicas evitando discussões que envolvessem os fortes indícios de superfaturamento e/ou corrupção praticados nas gestões anteriores, a gestão dos "doutores e empresários".
Outro ponto que chama atenção na prática social de boa parte dos "microfones" do rádio, reside na quase inexistência do jornalismo investigativo, o funcionamento deste dispositivos se dá na grande maioria por meio de "copiar e colar" textos/machetes de outros veículos, onde pouco se importa se tais machetes traduzem ou não fatos que refletem a verdade, o que vale mesmo é a propagação de factoides polêmicos e a captação de audiência. Desta forma, é neste cenário que os sentidos produzidos pela expressão "Bicões" ganha significado e se propaga pelas ondas das emissoras de rádio sediadas no município.
Desde a mudança das rádio educativas (década de 20) para o formato de rádios comerciais, onde o próprio nome já diz, trata-se de um comércio "quem pagar o preço" leva a mercadoria, isto é, a mídia comercial visa desde sempre o lucro de poucos, em detrimento dos anseios de muitos ouvintes, os quais por questões culturais utilizam o rádio geralmente como meio de tentar resolver alguns problemas que por décadas estão sob responsabilidade da seara pública, muitos sem solução até os dias de hoje.
Além disso, a palavra "Bicões" produz uma espécie de relativização dos discurso do rádio quando afirmam por meio de suas propagandas que o "rádio só fala a verdade", deixando de considerar que uma mídia comercial fala a verdade na medida em que esta suposta verdade não lhe traga prejuízos, ou seja, nem sempre os anseios da coletividade serão defendidos ou debatidos naquele espaço, sobretudo se houver pautas que prejudiquem os interesses do anunciadores pois são eles que pagam para que a propaganda (a impressão) seja transmitida como verdade absoluta.
Apenas a título de exemplo, aquele remédio que cura tudo e "ressuscita até defunto" anunciado dia e noite pelos "microfones" dificilmente poderia eventualmente ter seus efeitos de cura questionados, pois os comerciais são consagrados com uma "verdade" irrefutável, operam como uma afirmação não questionável, garantindo seus objetivos finais, a geração de lucro para quem anuncia e para quem vende. Por conseguinte, vamos ficar somente neste exemplo para não aprofundarmos as contradições inscritas na proposição "Bicões".
Dito isso, gostaríamos de lembrar que as emissoras passaram a reorganizar as pautas de seus programas jornalísticos por força da ruptura
histórica ocorrida no Poder Executivo local desde o ano de 2020, geralmente, é por meio de comentários e opiniões proferidas pelos "microfones" que os prefeitos das cidades se sentem coagidos e buscam alianças com os atores do rádio, alguns logo no início outros deixam para queimar as verbas quando está se aproxima o novo pleito eleitoral. Contudo, no caso de Jacobina,
vale ressaltar que desde a redemocratização, o Poder Executivo municipal
nunca havia sido tirado das mãos dos caciques tradicionais, isto é,
sempre transitava de uma família para outra, numa espécie de Dinastia,
orbitando numa seara hegemônica constituída geralmente pela classe médica Jacobinense e alguns forasteiros "importados" pela mesma casta.
Pois bem, adentrando no universo histórico e seu contexto radiofônico, gostaríamos de
destacar um ponto comum na mídia local, durante as gestões lideradas
pelas classes supracitadas, boa parte dos programas jornalísticos,
optavam estrategicamente por um enfoque nas pautas ligadas ao governo federal, ou seja, os deslocamento do debate para o âmbito federal,
deixando de elencar problemas importantes ligados ao universo municipal, este comportamento também se inscreve nos sentidos mobilizados pelos dizeres do prefeito ao sugerir o adjetivo "Bicões". Tanto é que nas últimas 3 décadas, os cofres públicos receberam
aproximadamente 22 bilhões de reais e quase nenhuma obra estruturante
foi erguida no município, aqui a expressão "bicões" ganha outros contornos que marcam o silêncio de muitos
"microfones" supostamente comprometidos com o bem coletivo.
Talvez, se a mídia radiofônica fosse constituída por menos "Bicões" e mais Jornalistas, sobretudo os jornalistas investigativos, o contexto social e político de nossa cidade poderia estar muito melhor, mas ao que parece estas emissoras de radiodifusão ocupam suas pautas e produzem seus editoriais numa perspectiva comercial, haja vista as mais de duas décadas onde a única coisa que se discute são os buracos da cidade e a plataforma da saúde pública que serve como trampolim para os candidatos que almejam o Poder Executivo. Uma pergunta que gostaria de fazer ao leitor, se a saúde pública não funcionar qual segmento profissional deve ganhar com isso? Observem que a luta de classes e as eventuais sabotagens estão em todos os lugares, são exatamente estes embates e os posicionamentos dos sujeitos que determinam os sentidos das palavras e dos enunciados proferidos pelos interlocutores de modo geral.
Deste modo, trouxemos à baila alguns elementos que servirão de base
comparativa com o cenário atual, uma vez que desde o ano de 2020 após a mudança do espectro político que dominava o Executivo local, gradativamente os "microfones" passaram a enfatizar supostos problemas na gestão municipal. Nesta perspectiva, as forças atuais que ocupam o governo
federal parecem ter a simpatia da maioria dos "microfones" que ocupam os estúdios da rádio locais, sobretudo quando observa-se um grande número de
jornalistas sendo vítimas cotidianas de ataques e até mesmo agressão durante o exercício de sua profissão, e muito pouco se propaga na pauta do rádio jornalismo, ou seja, o próprio movimento de escolha das pautas nestes programas de rádio já demonstra uma inclinação político que se inscrevem nos sentidos revelados pela expressão "Bicões".
Não obstante, os efeitos de sentido examinados na materialidade linguística "Bicões" revela que as práticas discursivas encampadas a partir do espaço radiofônico coloca em xeque a
premissa de que as emissoras de rádio locais seriam neutras, pois no
mundo onde as regras políticas são ditadas pelo capital e seus aparelhos ideológicos,
nenhum sujeito e/ou instituição social pode atribuir a si próprio a condição de neutralidade.
Por fim, depois das modificações no tabuleiro político municipal e federal, houve uma reconfiguração no funcionamento das práticas ideológicas propagadas pelas "rádias", tais mudanças refletem a nova configuração histórica instalada a partir da reorganização das forças políticas no plano municipal, estadual e federal nos últimos 4 anos. Por isso, Pêcheux (2014) afirma que é a ideologia que fornece as evidências pelas quais todo mundo sabe o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve...tais evidências que fazem com que um enunciado "queira dizer o que realmente dizem" e que mascaram, assim, sob a "transparência da linguagem" o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.
Em conclusão, sabemos da importância do bom jornalismo em prol da
democracia e do bem comum, entretanto, quando os dispositivos de
comunicação são gerenciados pelo capital privado, os objetivos comuns
passam a ser substituídos pelos interesses de pequenos grupos sociais
detentores do quarto poder (a mídia de massa) que disputa o Poder, esta constatação, é facilmente
verificada pelos sintomas atuais de parte da comunicação radiofônica
local. O jogo das pautas somado ao tom político pelo qual notícia é
levada ao ar, exibe, materialmente, o quanto alguns programas rádio jornalísticos se confundem com torcidas organizadas, tais posicionamentos revelam as práticas ideológicas presentes na conjuntura dada, a qual determina o estado da luta de classes instalada no momento histórico vigente.
Saudações democráticas,
Dayvid Sena.
Mestre em Estudos de Linguagens.